quase vazio, entrevista

Quase vazio - Entrevista por Victor da Rosa



Cildo Meireles disse, certa vez, que se interessava em intervir no espaço da maneira de um haicai. Pois embora tenha criado, em muitas de suas intervenções, a partir de uma “cultura do barroco”, trabalhando com grandes instalações e materiais em excesso, o artista também era tomado por um desejo de condensação e síntese, construindo uma poética concentrada, e oferecendo, muitas vezes, soluções muito simples ao seu processo de construção. “(...) mesmo que essa simplicidade seja mera aparência”, ainda diz Cildo.

A instalação cubo de poeira, de Aline Dias, que esteve no Espaço ARCO, de Florianópolis, em 2005, também pode ser vista como um poema de pouco verso, muito pouco. A artista passou dois anos recolhendo os restos de limpezas que fazia em sua casa, materiais que seriam certamente eliminados, comumente desprezíveis – como areia, pó, asas de insetos, fios de cabelo – e depositou tudo em pequena caixa, um cubo de 5cm x 5cm. Aos poucos, todo aquele material foi assumindo a forma da caixa, sendo que, na montagem, a artista apenas “desenforma” o cubo, construindo, com seu gesto, uma pequena escultura no espaço.

Aline é uma artista que costuma tensionar proporções. Em trabalhos anteriores, como nas fotografias de “pedras boiando” (2002) e “homem de açúcar” (2004), a artista já procurava este tensionamento de objetos pequenos com espaços muito maiores. Nesse sentido, seu cubo de poeira ganha força de condensação porque é, antes, uma intervenção no espaço. Seu sentido de síntese e mesmo de fragilidade é percebido e possível somente em inevitável comparação com o espaço no qual é mostrado – no meio de uma sala absolutamente vazia. Dessa maneira, o pequeno cubo introduz um estranhamento em contraste com a superfície do chão e as paredes todas vazias da sala, provocando, assim, um ruído mínimo – ou uma pequena prega, como sugere Barthes: “Considero que o haicai é uma espécie de incidente, de pequena prega, uma fenda insignificante numa grande superfície vazia”.

Mais que desfazer qualquer noção de monumento, Aline desfaz o próprio gesto – potencializa esta dissolução. Após algum tempo na sala de exposição, aqueles restos, colocados originalmente na forma de um cubo – e cabe perguntar aqui os motivos que levaram Aline a construir justamente a forma de um cubo, geométrica e racional por excelência – vão desmanchando de maneira muito lenta, perdendo solidez, permanência, e retornando ao lugar de resto. Aline constrói uma estrutura, e depois a desfaz; concentra, e depois dispersa; materializa o tempo, depois o desmancha. E dessa maneira, entre ironia e franqueza, parece evidenciar a própria fragilidade das coisas.



Victor da Rosa: Em suas séries de fotografias, como casa de gelo e balão (2003), flores (2003) e o que acontece com meninas doces (2004), você parece ficar num limite entre o registro de ações – pois se trata sempre de registrar situações criadas por você – e o trabalho mesmo com a fotografia, com a imagem. Como isso acontece?

Aline Dias: Acho que existe uma relação de interdependência entre fotografia e ação nestas séries. Não me parece relevante situar os trabalhos em uma categoria específica, mas acho importante destacar que o processo dessas imagens se constrói em um espaço entre ação e fotografia. Há, na arte contemporânea, o desejo de articulação de um lugar transitório entre linguagens. Nesse sentido, podemos pensar em uma conexão entre foto e ação, ou seja, mais do que a fotografia registrar uma ação, as fotos se relacionam com a ação e constroem uma narrativa a partir disso. Há uma ressonância entre ação e imagem que não é da ordem da representação, nem da documentação ou ilustração. Como aponta Philippe Dubois, a fotografia não é um documento que apenas registra a ação, mas participa do próprio processo de construção da ação, influenciando a concepção do espaço, o enquadramento, o ponto de vista. A fotografia está diretamente vinculada a uma ação, não deriva simplesmente dela. Acho que as imagens fotográficas, menos que descrições, são sugestões, interrogações. Podemos afirmar que não existe fotografia sem a ação, mas também que existe na imagem fotográfica uma narrativa própria, desprendida do tempo da ação. A fotografia está conectada a ação sem reduzir-se a um registro dela, a fotografia potencializa e desdobra esta ação.



Victor: Em seus primeiros trabalhos, você operou, basicamente, com a criação de fotografias. Nos últimos, você vem criando instalações, como cubo de poeira (2005) e carpet (2006), passando da superfície da foto para uma intervenção no espaço. Você considera isso uma descontinuidade?

Aline: Acho que nessa passagem o trabalho começa a incorporar em sua própria constituição e articulação com o espaço alguns processos que já estavam na fotografia, mesmo que em estado latente. Vejo muita continuidade na pesquisa apesar deste salto, desta alteração do suporte. O que não quer dizer que não esteja também trabalhando ainda com fotografia, mas acho que estou mais atenta às relações com o espaço, as coisas do mundo, aos processos, transformações. Vejo como continuidade a utilização de materiais efêmeros, o raciocínio espacial na questão das escalas, a busca por concisão, o sentido de pouco, mínimo. O que eu acho que mudou de forma mais decisiva foi o abandono a uma narrativa fechada na imagem. Acho que podemos até pensar numa narrativa mais incerta e móvel, como o cubo se desfazendo, por exemplo. Acho estou mais interessada em encontrar formas de o trabalho se estruturar a partir de um estar no mundo, de processos de transformação das coisas, o que já estava presente nas fotos, mas de forma mais indireta, mediada pela fotografia e pela estrutura narrativa. Já nas fotos me interessava a presença das coisas, como o papel se amassando, o açúcar se dissolvendo. Ainda que representassem algo (uma casa, um homem) eram também uma presença física no mundo que se relacionava com o ambiente. Acho que esse aspecto de uma representação ficou mais refinado, menos metafórico. Acho que eu tive uma vontade de ser mais simples ainda. Pensando que a minha fala poderia ser menos, menor, até. Em como poderia tirar partido da presença e da ausência dos próprios objetos, e de como o vazio, o não-dito, o não-feito, poderiam ser potencializados. Uma outra questão que me parece importante é que na fotografia esses encontros e processos de transformação da matéria estão deslocados de seu fluxo. A fotografia trabalha com a suspensão do tempo enquanto que as instalações deixam estes processos em aberto, participam de suas transformações, na medida em que exponho o próprio objeto, em sua precariedade, em sua impossibilidade de se tornar estável. Acho que as instalações, com a presença ou ausência dos próprios objetos no espaço, têm reforçado o sentido de fragilidade que era explorado nas fotos.



Victor: Como apontou Cristiana Tejo, em alguns de teus trabalhos existe uma perversidade disfarçada por imagens meigas e singelas. Nessas instalações, porém, penso que é mais difícil visualizar os rastros dessa perversidade.

Aline: Acho muito difícil o trabalho conseguir ser meigo ou doce sem parecer ingênuo ou bobo. Sinto que o mundo é tão complicado que, às vezes, parece difícil ou incoerente construir algo poético, procurar beleza nas coisas. Ao mesmo tempo, gostaria muito de apostar na generosidade, em um olhar cuidadoso para o mundo. Tem um trecho da Adília Lopes que eu gosto de citar: “Penso que mostrar só o lado cor-de-rosa das coisas é pecar por omissão. Mas mostrar só o lado negro das coisas é pecar também e também por omissão”. Acho isso muito complexo, na verdade, mais do que talvez esteja conseguindo explicar, e penso que talvez o trabalho acabe funcionando dessa forma, porque não consigo ter estas questões definidas nem separadas. Como se as possibilidades (entre a doçura e a ironia) estivem em conflito constante. Em contradição, em negociação. Tenho um certo pavor de ser piegas. Mas também acho que o excesso de sarcasmo e ironia deixa o mundo muito pesado. Nesse sentido, acabo optando por um sentido mais ambíguo, mais tênue, criado dessas armadilhas, desse primeiro olhar que não alcança o trabalho. Tem um outro dado que considero importante, que o papel às vezes se alterna: o homem de açúcar está prestes a se destruir diante do mar, já o homem de sal é quem ameaça a lesma. Tenho insistido muito em procurar evitar as dualidades, a necessidade de separar as coisas em categorias estanques, em relações de oposição. Gosto de um trecho da Adélia Prado, que diz: “O Bem e o Mal me escapam, mesmo e porque me habitam”. Acho que juntando e fazendo coexistir materiais, estados ou sentidos contraditórios, se evidencia a impossibilidade de pensar o mundo a partir de dicotomias muito rígidas, de excluir ambivalências e indefinições. Pensando dessa forma, acho que a destruição e a vulnerabilidade (o risco iminente de ser destruído) são aspectos presentes nas fotografias que seguem sendo explorados nas instalações. As contradições também seguem tendo um papel importante nas instalações, no próprio fato de construir um cubo de poeira, em que se contradizem as naturezas da matéria e da forma.



Victor: Sal, gelo, açúcar, gelatina, poeira – os materiais que você usa, tanto nas fotografias como nas instalações, parecem exercer uma grande força simbólica em muitos dos teus trabalhos, criando sempre uma potência de dissolução. Comente um pouco dessas escolhas.

Aline: Considero muito importante a questão da forma e do material e de como as coisas se dão entre eles. Gosto muito de operar entre essas oposições e contradições das matérias. Nas fotografias havia uma articulação muito especial entre a forma e a matéria: um homem de açúcar (e como isto pode ser metafórico, cheio de sentido). Depois, havia a estruturação de uma narrativa, especialmente a partir do encontro desta forma com um dado espaço (o que acontece com este homem de açúcar no mar). E nesta micro-narrativa, a vulnerabilidade da forma, a transformação da matéria. Nesses trabalhos mais recentes a articulação não é tão metafórica, mas os materiais seguem sendo tão, ou mais, importantes. Fico procurando objetos/materiais/formas/processos muito banais, mas muito próximos de vivências cotidianas, e tem me interessado cada vez mais percebê-los. Acho também muito importante destacar isso na arte contemporânea, essa não especificidade de meios, essa possibilidade muito rica de borrar as fronteiras entre o espaço do mundo e da arte. A destruição e a entropia me instigam muito, especialmente nos níveis mais mínimos, como mofo, poeira, os papéis amarelando. Os restos, os vestígios, as migalhas, e essas presenças quase imperceptíveis de traças, insetos, marcas e acúmulos, me fazem pensar muito sobre a permanência ou a sua impossibilidade. A impotência, a impossibilidade de não desaparecer, de reter, de suspender as coisas de seu fluxo. Fico pensando em como tudo é precário e frágil. E como insistimos diariamente para manter o mundo. Acho muito importante no trabalho a escolha dos materiais porque eles apontam para a transitoriedade da matéria. Me interessa, sobretudo, a insustentabilidade das formas, o caráter inteiramente provisório das coisas. Sobre a potêcia de dissolução, vejo que as séries exploram um sentido específico de transformação, em que algo se desfaz, tornando-se menos, deixando de ser visível. Dissolver é, de alguma forma, deixar de ser coeso, ou seja, abandonar as ligações muito rígidas entre as partes, perder a consistência. Nesse sentido, dissolver, dissipar, dispersar, diluir, desfazer, são formas de perder a concentração, de abandonar a forma estática e estável. Quem sabe, eu gostaria de passar menos tempo lamentando a impossibilidade de impor permanência às coisas (as comidas que apodrecem, as roupas puídas, amareladas, a ferrugem corroendo, etc).



Victor: Você disse que seu cubo de poeira é uma instalação e não um objeto. Quais as implicações dessa diferença no trabalho?

Aline: Considero o cubo de poeira uma instalação porque é fundamental, neste trabalho, a relação do cubo com o espaço vazio em que ele é instalado. Como instalação, e não objeto, o cubo não independe do espaço, mas o ativa e é ativado por ele. O cubo, muito pequeno, colocado diretamente no chão, tem uma condição de extrema vulnerabilidade na sala. Esta articulação das escalas (a arquitetura e o cubo), o isolamento do cubo e o vazio do espaço, é que permitem pensar esse sentido de vulnerabilidade, reforçando a precariedade do objeto. E permite pensar a impossibilidade de permanência, o sentido provisório do trabalho. A instalação aponta para o entendimento de que o significado do trabalho não está inteira ou isoladamente no cubo, enquanto um objeto ou escultura, mas que o contexto espacial em que se insere faz parte da obra. A forma como um objeto está situado em um determinado ambiente, altera seu sentido. Dessa forma, acho interessante pensar também que a instalação problematiza a estabilidade do sentido fechado no objeto, conferindo uma dimensão temporal e relacional ao trabalho, como estado provisório, circunstancial, mutável.

Victor da Rosa, ensaísta e bacharelando em Letras pela UFSC.

Texto publicado no Caderno Idéias, do Jornal A Noticia e na revista eletrônica Net Processo, setembro de 2006.